CARTA
DE APRESENTAÇÃO
Este filme é
fruto de uma bolsa de estudos que ganhei da Fundação MacArthur.
Durante três
anos estudei o século XX exaustivamente. No inicio de meus estudos,
cheguei perto de uma crise de esquizofrenia. Só acalmei e consolei-me
quando percebi que mais esquizofrênico que eu era o próprio
século. Em nenhuma outra época histórica a dualidade
CRIAÇÃO/DESTRUIÇÃO se manifestou de forma
tão POTENCIALIZADA. Qual aspecto deste século discutir,
se os assuntos são tão intrincados, contraditórios
e difíceis de se compreender?
Resolvi discutir um
dos fatos que mais me chamam a atenção neste final de século,
isto é a BANALIZAÇÃO DA MORTE e, por correspondência
direta, a Banalização da VIDA.
Comecei então
a visitar cemitérios e imaginar pequenos recortes biográficos
da vida de pessoas que eu não conhecia. Como por exemplo, que time
de futebol torcia José da Silva que durante 40 anos trabalhou numa
linha de produção de Veículos da Renault; qual era
a receita de bolo secreta que tal senhora fazia...
Comecei a imaginar
como esses detalhes de cada pessoa ali morta poderia conectar-se com os
fatos históricos ou tendências comportamentais do século:
como estas pessoas e suas pequenas biografias davam consistência
carnal, psíquica e social aos fatos históricos que os historiadores,
sociólogos ou psicólogos do comportamento discutem em seus
livros.
Pensar também
como, na maioria das vezes, os pequenos personagens não só
avalizam como dão consistência singular ao discurso maluco
dos grandes personagens.
Apesar de falar muito
da história do século, minha intenção não
foi ser enciclopedista, professoral ou mesmo respeitar a linearidade temporal
dos fatos.
Tomei duas decisões
importantes ao desenhar meu documentário: não coloquei nenhum
dado estatístico e nenhum tipo de locução no documentário.
O locutor é
um personagem que geralmente ocupa o papel de ator principal na maioria
dos documentários. É como se a realidade sempre necessitasse
do aval da PALAVRA para ter legitimidade. Cada vez mais considero que
a palavra em forma de fala é muito limitada e comunica muito pouco.
O locutor parece querer
sistematizar o buraco do não compreendido.
Além do que
o locutor adora vomitar dados estatísticos - e quando se fala de
morte, a estatística vale pouco. Na morte, não interessa
o milhar, mas a unidade-próxima. Ouvir notícias de milhares
de mortos na Guerra da Bósnia, na fome africana ou no desastre
de avião, parece sonorizar pouco e só acaba tendo dimensão
real se o morto em alguma dessas catástrofes for meu parente ou
amigo.
Resolvi também
tirar todo tipo de depoimento, pois sejam de grandes ou de pequenos personagens,
os depoimentos parecem estar cada vez mais fadados ao espetáculo,
ao ego mentirinha, a dizer pouco sobre nossa complexa e conturbada vida
psíquica.
Colocando só
música, ruídos e silêncios, procurei não tapar
o buraco do desconhecido, do não dito, do não que talvez
seja o sim, ou, quem sabe, o talvez.
É um filme realizado
com orçamento baixo, mesmo para os padrões brasileiros.
Gastei cerca de R$ 140.000,00 (cento e quarenta mil reais), dos quais
80.000,00 foram consumidos com pagamentos de direitos autorais a mais
de 40 instituições ou pessoas nos 4 continentes.
Um computador me ajudou muito nas 2.000 horas que gastei na edição
deste filme.
Bom Apetite.
Marcelo Masagão
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