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Pausa de 73 minutos para reflexão
Kleber Mendonça Filho - Cinemascopio

A noite de quarta-feira, no III Festival de Cinema Nacional do Recife, guardava um mistério, que virou uma feliz surpresa. O documentário inédito Nós Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos (SP, 35mm, 1999), de Marcelo Masagão, trouxe um sopro de ar fresco à competição, tanto pelo seu ineditismo como pelo trabalho em si, uma reflexão de 73 minutos sobre a colocação do ser humano no mundo e no tempo, mais precisamente, no século 20. Ao longo da projeção, a platéia foi claramente hipnotizada pelo filme, que estabeleceu, desde o início, suas regras de narração junto ao público, que as obedeceu cegamente, sempre com tempo para reflexão. Foi calorosamente recebido, numa quase ovação. O Festival do Recife foi extremamente feliz em trazer este filme, que irá participar, mês que vem, no Tudo é Verdade, em São Paulo, festival dedicado a documentários.

Primeiro de tudo, é importante levantar uma questão essencial. O Cinema Nacional, antes da virada do ano 2000, já entrou numa nova fase estética promovida pela chegada de novas tecnologias. Isso já havia ficado evidente pela presença de curtas neste Festival como A Pessoa é Para o Que Nasce ou História de Amor a 16 Quadros Por Segundo, originalmente realizados em vídeo, mas transformados em cinema através desta mesma tecnologia.

O filme de Masagão, no entanto, pode ser considerado o maior símbolo, nesta fase atual do Cinema Nacional, deste novo tipo de instrumento que artistas do áudio-visual, hoje, tem ao seu alcance. É a tecnologia utilizada para o bem, pois corta custos, aumenta a oferta de instrumentos de expressão e tem uma personalidade própria. Enfim, farto material para debate entre subversivos e puristas da imagem.

Para começar, o filme foi feito em casa, numa combinação de computadores que consumiu cerca de U$ 8 mil. Esse equipamento editou, processou e manipulou, durante duas mil horas de edição, U$ 80 mil de material comprado a bancos de imagens, cinematecas, estúdios de cinema, museus e redes de TV. Uma vez editado, e ainda em formato eletrônico, a obra foi enviada para a Four Media Company, em Los Angeles, que passou tudo para 35mm cinema ao custo de U$ 30 mil. A prova final aconteceu no Teatro Guararapes, um cinema de tela e som grandes que mostrou o filme para uma platéia enorme, que foi tomada de assalto pelo trabalho. É cinema? Pode crer.

Nós Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos também mostra-se produto não exatamente do Brasil, mas do mundo globalizado de hoje, talvez outra fonte de discussão. Após a exibição, o diretor esclareceu que a não-inclusão de uma quantidade maior de material brasileiro deu-se pelas imensas deficiências que o país tem na área de arquivo e manutenção das suas próprias imagens. Além disso, seu filme propõe uma visão abrangente (até mesmo presunçosa) da vida humana no século 20.

Por isso mesmo, torna-se uma antena de referências pop e clássicas, com forte influência da video arte de Bill Viola, de Koyaanisqatsi e Powaakatsi, de Godffrey Reggio, do Histórias Reais, de David Byrne, do documentário Querida América - Cartas do Vietnã, dos antigos cine-jornais, da publicidade e pintura, do que a TV tem de melhor e pior, seja através da sua capacidade de mostrar, seja pela sua habilidade de banalizar. Além disso, Masagão é o organizador do Festival Mundial do Minuto, evento que atrai visões rápidas e fragmentadas de realizadores de todo o planeta, influência visível no seu trabalho.

Aqui, no entanto, não há aquela sensação de "segurança" que a TV muitas vezes nos dá, pois estamos à mercê da visão de Masagão, que desenvolveu uma espécie de ficção-factual em cima de uma montanha de imagens que já fazem parte do consciente coletivo, e outra montanha de imagens que nunca vimos antes. Ele criou personagens que nunca existiram, mas que poderiam ter sido reais, em seus respectivos tempos e espaços.

Um certo chinês chamado Lin Yang, por exemplo, é apresentado por uma fotografia tirada numa fábrica de bicicletas. Logo depois, somos informados que teria sido responsável pela execução de três professores de matemática, durante a Revolução Cultural. Há uma Martha Brinkley, americana, lanterninha de cinema que teve a vida marcada pelo tédio, ou uma família (os Jones) de guerreiros americanos (avô, pai, filho) que teriam lutado nas duas primeiras guerras e Vietnã, história talvez inspirada por Pulp Fiction, de Tarantino. Em Serra Pelada, vemos ao longe 12,668 "Pedros" e acompanhamos a morte patética de um suposto alfaiate parisiense que acreditou poder voar da Torre Eiffel, pela força do pano.

Ao criar um mosaico humano desse tipo, Masagão eleva a força do seu trabalho, livrando-o de uma sensação de "eu já sabia disso" que ameaça seu filme toda vez que elementos como Hitler, aspirina, o crash de 29, Revolução Industrial, Luz Elétrica e Religião são abordados. Seu fator humano, apaixonadamente inventado, é o diferencial. Não há nada de novo sobre o Enola Gay jogando a bomba atômica em Hiroshima, mas sim a inclusão da foto de um casal japonês e seus dois filhos, todos falecidos em 1945, acompanhada da informação: "ela fazia bolinhos de arroz deliciosos, e ele foi um exímio carteiro".

Para finalizar, há uma sensação forte que permeia este filme, ditada pelo seu ritmo que lembra algum sonho. Esta relação do filme com o espectador é difícil de obter, e poderá render a Masagão admiração pelas sensações que foi capaz de inspirar ao longo da sua presunçosa, porém bem sucedida visão fragmentada de várias coisas que o Século 20 viu acontecer.

Filme visto no Teatro Guararapes, Olinda, Março de 1999.