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ESSE
MARAVILHOSO E REPULSIVO SÉCULO
por Arlindo Machado
Se o tempo não
faz senão acumular cadáveres, existe algo de necrofilia
nessa coisa que chamamos de história. Em algum sentido, para fazer
uma retrospectiva do século, é preciso escarafunchar os
túmulos, perturbar o sono dos mortos e trazê-los de volta
à vida. Um século é feito de crenças, ideologias,
ambições, entusiasmos, sonhos, alucinações,
insensatez, que depois de iluminar ou obscurecer o seu tempo, se transformam
em cinzas e são enterrados junto com seus protagonistas. Eis porque
esta melancólica mirada sobre o século que agoniza traz
um título retirado justamente do pórtico da entrada de um
cemitério: "Nós Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos".
O século XX reconstituído
por Marcelo Masagão, a partir do exame de centenas de milhares
de metros de materiais de arquivos, desde o tempo de Thomas Edison até
hoje, tem ares de um necrológio dos personagens que fizeram o século,
sejam eles grandes ou pequenos, importantes ou insignificantes, visionários
ou vândalos, alguns reais, outros imaginários (mas sempre
baseados em registros documentais). Nenhuma lição, nenhuma
moral, nenhuma pretensiosa análise do esprit du temps sintetizam
essas imagens. Do século que se vai, ficam apenas as pequenas histórias
individuais, os acontecimentos esparsos, as utopias perdidas. Ao apagarem-se
as luzes do período, não nos resta mais a fazer senão
o levantamento do espólio.
Mas, por outro lado,
o século recuperado por Masagão tem também um frescor
que não se encontra nas habituais edições de materiais
de arquivos. O essencial neste filme não é apenas a vasta
pesquisa de imagens, mas sobretudo a maneira como essas imagens são
associadas entre si numa montagem espirituosa e inteligente. Na verdade,
o filme é estruturado na forma de pequenas unidades de montagem,
como se fossem hacais áudio-visuais, onde acontecimentos distantes
no tempo e no espaço são comparados, confrontados e explorados
em todas as suas possibilidades plásticas, poéticas e conceituais.
Para a obtenção desse resultado, o autor soube extrair o
melhor dos novos recursos de edição não-linear possibilitados
pelos sistemas digitais.
Diz-se que o século
XX é (foi?) o século das imagens. De fato, o cinema e, depois,
a televisão povoaram a imaginação de seus respectivos
contemporâneos. Num certo sentido, o filme de Marcelo Masagão
se propõe a dupla tarefa de verificar como uma civilização
construiu-se a si própria na forma de imagens e, alternativamente,
como essas imagens reconstruíram uma civilização.
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