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Os comuns do século 20
por José Geraldo Couto - Folha de S. Paulo

Um velho poema de Brecht ironizava os "grandes vultos da humanidade'', mostrando que eram os personagens anônimos que moviam a história. Há muito dessa idéia em "Nós que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos'', de Marcelo Masagão, uma colagem de imagens documentais e ficcionais colhidas pelo autor em arquivos do Brasil e dos EUA.

O documentário, que ganhou os prêmios de melhor filme, roteiro e montagem no recente Festival de Recife, é um painel do século 20 não tanto a partir de seus grandes nomes (Hitler, Stálin, Mao etc.), mas dos homens e mulheres comuns que instalaram telégrafos, construíram prédios, venderam sanduíches e serviram de bucha de canhão nas guerras.

Há no filme, além da atenção ao rosto singular destacado da multidão, um esboço de organização e de construção de sentido para um século tão conturbado, fragmentado e frenético. Aliás, uma das virtudes do filme é o de buscar em sua própria forma, e não num discurso explicativo exterior, seu modo de ler o século. Assim, a velocidade, a dispersão, a técnica, a violência _marcas de nosso tempo_, configuram também a estrutura formal do documentário. Na ausência de narração oral, apenas pequenos textos informam (ou inventam) sobre os personagens e situações apresentados.

As imagens são organizadas mais ou menos por blocos temáticos: a mulher, a guerra, a eletricidade etc. Mas há outros nexos e analogias a ordenar o material e ditar seu ritmo. Um exemplo é o bloco intitulado "Quatro Pernas'', que se entrega a um paralelo poético entre a dança de Fred Astaire e os dribles de Garrincha.

Num século que primou pela brutalidade e estupidez, Masagão vai buscar momentos luminosos de criatividade e beleza - a dança de Nijinski, a sensualidade de Josephine Baker, o humor de Buster Keaton, a magia de Georges Méliès -, como se fossem as faíscas de invenção surgidas dos atritos da história. Uma figura recorrente, que permanece como um fantasma durante todo o filme, é Sigmund Freud, o homem que revelou a existência de um enredo subterrâneo para além da história visível dos indivíduos e da espécie.

Como notou o historiador Nicolau Sevcenko, um dos consultores do projeto, o filme mostra os indivíduos comuns "dragados pelas engrenagens dos gigantescos complexos industriais, das linhas de montagem, do lazer massificado''. Orquestrar esse trânsito entre o indivíduo e a massa, o singular e o padrão, é a grande façanha desse filme-colagem, que se serve criativamente dos recursos digitais (fusões, sobreposições, abertura de "janelas'', mudanças de velocidade) para efeitos estéticos (sobretudo rítmicos) e conceituais. Enfim, um videoclipe inteligente.