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O SÉCULO DO HOMEM COMUM
por Denise Lopes

Documentário de Marcelo Masagão mostra personagens anônimos nos tempos da banalização da vida

Contar o século do império da imagem só através de imagens, numa colagem que abusa de recursos digitais. Em 73 minutos e ao som do músico minimalista belga Win Mertens, Marcelo Masagão elege, em "Nós que aqui estamos por vós esperamos", grandes e, principalmente, pequenos personagens que impulsionaram a história nos últimos cem anos. Entre os pequenos, a maioria é fictícia. Fundida, como no caso do piloto kamikaze que escreve à família, de vários outros a partir de múltiplas cartas encontradas pelo pesquisador. Entre os grandes, Picasso (Pablo), Einstein (Albert), Lenin (Wladimir) e Freud (Sigmund), identificados apenas por seus primeiros nomes e muito de passagem. O último enquadrado como consultor espiritual, ao lado do historiador inglês Eric Hobsbawm, no próprio crédito do filme, que adota o critério dele ao anunciar que trata do "breve século 20.".

Sem estatísticas, cronologias ou hierarquizações, o filme, que não pretende ser enciclopédico, muito menos mostrar "a realidade", a não ser do ponto de vista assumido do diretor, discute a banalização da morte e, por conseqüência, da vida, que Masagão considera "a grande marca deste século". O título do filme, tirado de uma inscrição da entrada de um cemitério no interior de São Paulo, resume o espírito da obra e pretende entregar ao espectador a parcela de culpa de cada um pelo século que se encerra.

Politicamente correto, mas polêmico, sobretudo, pelas associações que imprime e pela forma e montagem que assume, lembrando o estilo compilativo e contemplativo de Godfrey Reggio em Koyaanisqatsi e Powaqqatsi - que tem um trecho utilizado no filme - e as disfunções temporais e espaciais de justaposições de frames de um Peter Greenaway, os flashes do século 20 mostrados por Masagão são, no mínimo, um bom momento reflexivo. Com estréia marcada para 6 de agosto no Rio e em São Paulo, o longa - melhor roteiro, montagem e filme para o júri oficial e popular no último festival de Recife - é o primeiro trabalho para o cinema do diretor do curioso Festival do Minuto, que reúne, em São Paulo, uma vez por ano, desde 1991, as mais curiosas criações em vídeo ou película de artistas plásticos e videomakers.

Paulista, com formação incompleta em Psicologia e passagens pelo Instituto Psiquiátrico de Trieste, na Itália, Masagão gastou três anos de pesquisa, um ano de aula em História Contemporânea e consultoria com o professor da Universidade de São Paulo (USP), Nicolau Sevcenko, e mais de duas mil horas (um ano e meio) em frente a um computador, editando em Perception - "um parente pobre do Avid, que não trabalha em tempo real e leva entre uma e duas horas para realizar uma operação" -, e Speed Razor, os milhares de registros levantados. "Tecnicamente foi a coisa mais idiota. Tudo botãozinho, que você aprende a usar em dois minutos. Difícil era saber se a operação ia renovar e transmitir o que eu queria bem ou não. Fazia algo a noite e só ia ver o resultado no outro dia", contou. Outra peculiaridade é que não houve roteiro. "É ridículo se fazer roteiro hoje com a edição digital. As possibilidades são inúmeras e não há mais o risco que havia na edição tradicional de se perder qualidade", sentencia. "O principal foi encontrar o tema e o jeito como queria contar".

Com bolsa de estudo da Fundação MacArthur para produzir um CD-Rom, Masagão acabou realizando um longa com apenas R$ 140 mil. Dos quais R$ 80 mil com pagamento de direitos autorais a mais de 40 instituições ou pessoas e R$ 30 mil com a kinescopia. "A tecnologia permite que se faça filmes baratos. Não há porque o Brasil produzir filmes de R$ 3 milhões, por exemplo. É como colocar uma baleia para nadar numa piscina." A dificuldade de selecionar o que ia ou não entrar no filme, segundo Masagão, só não foi maior do que o desafio de contar a história do século. "Foi a curiosidade que me moveu. Fui me acalmando à medida em que ia vendo as dezenas de documentários sobre o século que comprei. Dos mais caretas aos mais legais, todos eram absolutamente delirantes. Porque é difícil mesmo juntar um século."

Sem locução ou depoimentos gravados, o filme que trafega na fronteira do documentário com doses ficcionais, dá ênfase à primeira metade do século e às grandes guerras mundiais para falar da morte. "O filme ia ter depoimentos orais, mas fiz uma seleção tão rigorosa que acabei gostando de muito poucos. Não fiz a conta dos personagens reais e ficcionais. Mas imagine um gringo vendo o Bispo do Rosário com seu manto para se encontrar com Deus, vai achar que é ficção", raciocina, dando a verdadeira chave do filme: "a dúvida, pois é impossível captar a realidade a não ser de um ponto de vista".

Um balé de rostos e momentos

"Numa guerra não se matam milhares de pessoas. Mata-se alguém que adora espaguete, outro que é gay, outro que tem uma namorada. Uma acumulação de pequenas memórias..." Christian Boltanski.

A citação do artista plástico contemporâneo francês que aparece na abertura do documentário define a abordagem individual da história do século contada por Marcelo Masagão, no que chama de filme-memória. O diretor diz que tirou a frase de uma entrevista que assistiu na televisão e que sabe apenas que Christian ou Cristiam - o nome do artista aparece grafado como Cristiam Boltaski - é fotógrafo. "Não sei se ele é francês", não se preocupa. O desprendimento com os fatos não tira a força de um filme que usa imagens reais mas mistura ficção e realidade. "O historiador é o rei", rebate numa referência a qualquer tipo de acusação já na primeira frase que aparece na tela. Para completar: "Freud, a rainha". E assim segue por uma linha poética e pessoal, que une por edição eletrônica os rostos de Mao, Stálin, Mussolini e Hitler. O balé de Nijinski dita o ritmo na primeira divisão do filme, que mostra os avanços tecnológicos. Os efeitos sonoros de André Abujamra surpreendem entre uma queda do muro de Berlim, em 1989, e um crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929. Os filmes de Dziga Vertov, como Homem com uma câmera cinematográfica, que inovaram na montagem cinematográfica, são mostrados, mas os ensinamentos um tanto esquecidos na edição do próprio filme. Coco Chanel, Josephine Baker e muitas anônimas, trabalhando em fábricas ou queimando sutiãs nas ruas, são algumas lembranças do filme, que dividido quase em capítulos, dedica um integralmente a "Elas".

A contribuição brasileira ao século fica restrita a poucas aparições. Serra Pelada, o filme Yndio do Brasil, de Sylvio Back, Garrincha - "o acho mais sedutor do que Pelé e quis falar mais das pessoas que já morreram" - e uma frase que o poeta russo Maiakovski teria escrito em 1907 - "Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz" -, é praticamente todo traço relevante da cultura brasileira no filme. Nas artes plásticas o vigor brasileiro é maior, Bispo do Rosário e José Leonílson estão lá. Leonílson entre os quatro escolhidos do século, junto a Hopper, Munch e Duchamp. Carmem Miranda não é lembrada. "Não quis ser didático. Desde o início tinha em mente citar o Nelson Rodrigues, mas não consegui achar um jeito e essa idéia acabou não entrando. Queria colocar também Sinfonia de uma metrópole, uma cópia de Berlim, sinfonia de uma metrópole, de Walther Ruttman, com imagens da década de 20 de São Paulo, mas as dificuldades na Cinemateca Brasileira foram tantas que não deu", se conforma.

Elvis, Coca-cola e McDonald são tratados no mesmo pé de igualdade, como preferências das gerações. As décadas de 20 e 60 ressaltadas como as épocas dos modismos. Três quadros de Hopper - um recorde no filme - são mostrados apesar da pouca influência do americano na pintura do século. "Adoro o cara, se pudesse colocava cinco e ele não tem parente chato para reclamar direitos", brinca, justificando a escolha, sem culpas. Mas o mais interessante no filme de Masagão são as histórias fictícias ou reais de pequenos personagens que se fundem a grandes acontecimentos. Como o salto para o vôo do alfaiate M. Reisfeld do alto da Torre Eiffel, em 1911, à explosão da Challenger, em 1984. Ou a constatação de que Alex Anderson, trabalhador da Ford T, apertou um sem número de parafusos na fábrica, gostava de piquenique aos domingos e nunca teve um Ford T.

A dimensão humana, individualizada, aliada a grandes momentos de edição do filme, como no capítulo, "4 Pernas", que une as de Garrincha às de Fred Astaire, valem cada tostão gasto com o ingresso comprado. O apelo à emoção na imagem como define "de um menino em qualquer esquina da América do Sul" também. A mão solta ao chão no surrealista Um cão andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, e Voyage dans la lune, de George Méliès, são algumas das lembranças cinematográficas, no século da imagem.