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RECORTES DO SÉCULO
por Émerson Maranhão
Editoria do Vida & Arte - O Povo

O pórtico de um cemitério no interior de São Paulo deu o mote para o cineasta Marcelo Masagão narrar, a seu modo, a História do século XX. O filme ``Nós que aqui estamos, por vós esperamos'', que abre a programação da ``Semana do Cinema Brasil & Independentes'', traça uma trajetória do século a partir de recortes biográficos de pequenas e grandes personagens que viveram no período. Aclamado por público e crítica em diversos festivais, o cineasta participa hoje no Espaço Unibanco Dragão do Mar do debate de abertura do evento. Em entrevista exclusiva ao Vida & Arte, Masagão explicou as inovações tecnológicas e conceituais do filme, comentou sobre a boa recepção que tem tido e ainda falou sobre a polêmica com a organização do Festival de Recife, por causa de um prêmio de R$ 50 mil anunciado e não pago.

Vida & Arte - Como surgiu a idéia de fazer ``Nós que aqui Estamos, por vós esperamos''?
Marcelo Masagão - Na verdade, esse trabalho é resultante de uma bolsa para pesquisa que eu ganhei da Fundação MacArthur pra estudar o século XX. Inicialmente era pra ter sido feito um CD-ROM, esse era o projeto, mas no meio da pesquisa eu fiquei muito animado com as imagens que fui achando e achei que merecia fazer um filme. Foi daí que surgiu.

Vida & Arte - O filme tem tido uma recepção muito boa da crítica e tem ganho vários festivais. Você esperava essa recepção tão positiva?
Marcelo Masagão - Não, eu não esperava e estou muito contente com ela. Tanto de crítica como de público também, que eu acho mais importante até.

Vida & Arte - O filme traz algumas inovações tecnológicas. Ele foi feito todo em computador e só depois foi passado para a película. Como foi esse processo?
Marcelo Masagão - Eu faço uma avaliação que aqui no Brasil é rídiculo você fazer filmes que custem mais de um milhão de reais. Não sou, em príncipio, contra filmes caros, é porque eu acho que a gente tem pouquíssimas salas para exibir, então você fazer um filme caríssimo aqui é como você criar uma baleia numa piscina, ela morre. O preço do ingresso médio, pra um filme de três milhões, com uma média de público de 20, 30 mil espectadores, vai ter que ser R$ 100,00. Acho um absurdo isso. Então a minha produção teve um baixíssimo orçamento. Gastei 140 mil dólares para fazer todo o filme, dos quais U$ 80 mil foram consumidos só com direitos autorais. E eu fiz com um baixo orçamento porque hoje a tecnologia permite que você o faça. A placa que eu usei para editar custou U$ 2 mil, ou seja cada hora de edição saiu a US$ 1,00.

Vida & Arte - Como você estruturou conceitualmente o seu filme?
Marcelo Masagão - Eu tenho duas coisas, dois nortes para o projeto. É muito difícil você ter um roteiro para um documentário. Em vista que você vai documentar uma coisa que você não conhece ainda, só quando você conhecê-la é que... é a partir daí que sai o roteiro. Mas isso não quer dizer que você não tem que ter nada na cabeça. Você ficar completamente a mercê do seu objeto de estudo, você pode ficar meio louco também e não sair nada. Você tem que ter alguns nortes. Eu tinha basicamente dois nortes que eu queria desenvolver no filme. O primeiro deles era a banalização da morte, que é um assunto que acho premente hoje dia. Quer dizer, permeou o século inteiro e terminou o século com esse problema ainda, cada vez a vida humana vale menos. E o outro norte que eu tinha era... não era bem um norte, mas era como eu ia contar a história. Resolvi optar em contar a História do ponto de vista de recortes biográficos de grandes e pequenas personagens. A História geralmente é vista como a história dos ``grandes acontecimentos'', dos ``grandes homens que fizeram a História'' e tal. O que não é a realidade. Atrás desses dez homens teve um batalhão de pessoas que está de um lado ou de outro fazendo a História com seus sonhos, seus pequenos defeitos, suas pequenas indagações e tal. Isso foi um grande acerto do filme, porque conta a História de um jeito diferente.

Vida & Arte - Como tem sido a carreira de festivais de ``Nós que aqui estamos...''?
Marcelo Masagão - É curioso porque como é um documentário que não é tradicional ele causa, obviamente, uma sensação diferente nos festivais. Eu me surpreendi porque ele tem sido muito melhor recebido por festivais de ficção que por festivais de documentário.

Vida & Arte - Mas ele ganhou o prêmio máximo no ``Tudo é Verdade''...
Marcelo Masagão - Eu estou falando de uma tendência. Festivais como o ``Tudo é Verdade'' ou o Festival de Amsterdam, que é o maior do mundo, onde os diretores têm uma abertura para documentários não tradicionais, ele tem entrado. Mas a maioria deles não é assim. O que acontece é que ele está tendo uma melhor recepção em festivais de ficção. Ganhei o Festival de Recife, que não é uma festival de documentários. Mesmo internacionalmente, vários festivais têm me convidado, mas festivais de ficção. Achei curioso isso.

Vida & Arte - Marcelo, como ficou resolvido o problema entre você e a organização do Festival do Recife por causa do prêmio que não foi pago?
Marcelo Masagão - Não está resolvido até o momento. O Festival de Recife está sendo processado, a empresa que organiza o festival está sendo processada por mim. Esse caso vai ser resolvido na Justiça. Mas vai resolver porque eles anunciaram em sete jornais, de cinco Estados diferentes, que iriam dar um prêmio. Eles até reconhecem que anunciaram, mas falam que foi um engano da assessoria de imprensa. Agora, como é que há um engano e não se preocupam em nenhum momento em desmentir? Quiçá para os oito participantes que foram para Recife, era só uma cartinha para cada um. Enfim, infelizmente vai ter que ser resolvido na Justiça porque eles não honraram o que divulgaram publicamente. Anunciou tem que pagar. Não é nem o fato de ser R$ 50 mil. Podia ser R$ 1.000,00. A coisa tem que ser séria, né? Teve membro do júri que me falou que esse prêmio existia e foi suspenso no meio da semana porque estourou o orçamento, convidaram muito artista da Globo, convidaram mais gente do que podiam. E aí tiram o prêmio? Palhaçada! Não avisam a ninguém? Não dá.

Vida & Arte - Um pouco antes da divulgação oficial dos competidores do IX Cine Ceará, chegou a ser comentado informalmente que o seu filme seria o único representante brasileiro na Mostra Internacional de Novos Talentos. Quando a programação oficial foi divulgada, o concorrente nacional foi ``Um Copo de Cólera'', de Aluizio Abranches. O que houve?
Marcelo Masagão - Olha, eu nem sabia disso. Estou tomando conhecimento agora. Fico surpreso em saber isso. Não sei o que aconteceu. Eu estava torcendo muito para participar do Cine Ceará. Acho que o pessoal (da comissão de seleção) viu o filme e avaliou que era melhor Um Copo de Cólera.

Vida & Arte - Quais foram os festivais internacionais que o filme participou?
Marcelo Masagão - Ele participou de um festival em Munique (Alemanha), onde ganhou menção honrosa. Três festivais nos Estados Unidos. Agora ele vai para Montreal (Canadá), depois segue para Cuba, onde já foi selecionado. Também já foi selecionado para o Festival de Amsterdam, que é o mais importante do mundo. Abre o Festival de Gramado... Enfim, tem uma boa carreira pro filme.

Vida & Arte - Você falou que o filme fugia do conceito clássico de documentário. Quais as inovações formais que ``Nós que aqui estamos...'' traz?
Marcelo Masagão - A primeira diferença é que eu tirei o personagem principal de qualquer documentário, que é o locutor. Na maioria dos documentários, o locutor fala tanto que as imagens são até detalhe. Quase sempre tem um texto lá e o cara sai procurando imagem para cobrir. Eu tirei isso. Tem uma coisa que o crítico de cinema Jean Claude Bernadet disse quando escreveu sobre o filme, que a gente falava que esse século era o século das imagens. E é mentira, é o século das imagens acompanhadas de palavras. Não é a imagem pela potencialidade dela, mas sempre existe uma palavra junto, como regra, que define o que é aquela imagem, tirando toda a potencialidade que ela possa ter, no sentido de pluralidade mesmo. A palavra meio que dá uma formatada, ``olha, essa imagem é exatamente o que eu estou dizendo''. E eu tive essa preocupação de tirar isso. Eu me baseei na química: música e imagem em movimento. Isso, de cara, já faz com que a pessoa reflita muito mais.