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Documentário
examina a banalização da morte
por
Luiz Zanin Oricchio - OESP
"Nós
Que aqui Estamos por Vós Esperamos", que marca a estréia
de Marcelo Masagão no gênero, é resultado de um
amplo estudo sobre o século 20; segundo o cineasta, em nenhuma
outra época da história da humanidade a dualidade criação-destruição
manifestou-se com tanto vigor
Nós Que aqui
Estamos por Vós Esperamos. É a inscrição no
pórtico de um cemitério do interior. Também é
o título de um documentário, assinado por Marcelo Masagão,
da Agência Observatório, que produz, a cada ano, o Festival
do Minuto - aquele concurso de filmetes com duração máxima
de 60 segundos, que fazem a apologia da síntese como forma de arte.
Em sua estréia no documentário, Masagão não
se preocupou em ser fiel ao espírito do festival que promove e
rodou um filme de 70 minutos de duração.
"Ele fala de um
tema amplo, que é a banalização da morte e, portanto,
da vida", informa o cineasta. Tudo começou com uma bolsa que
ele recebeu da Fundação MacArthur. Masagão passou
a estudar intensivamente o século 20. Segundo ele, em nenhuma outra
época da história da humanidade a dualidade criação-destruição
manifestou-se com tanto vigor. O século testemunhou o grande salto
à frente da tecnologia, mas, também, as duas guerras mais
sangrentas de todos os tempos.
A idéia inicial
era reunir imagens que discutissem esses conceitos e produzir um CD-ROM.
À medida que o trabalho ia se desenvolvendo, Masagão notou
que tinha em mãos um material tão rico que dele poderia
tirar um filme.
Pesquisa
- Para dar consistência à sua pesquisa, Masagão viajou
para Paris e Nova York. Garimpou imagens em arquivos, reviu filmes, vasculhou
antigos cinejornais. Confrontou imagens de pessoas famosas com a de ilustres
desconhecidos. E passou a criar pequenas histórias com aqueles
personagens. Imaginou, por exemplo, que um determinado operário,
que trabalhara 40 anos na Renault, torcia para certo time de futebol.
Ou que uma senhora, anônima, que aparecia num filmete dos anos 30,
conhecia uma receita de bolo que a tornava famosa - pelo menos na família
e entre os vizinhos.
"Comecei a imaginar
como aquelas vidas extintas podiam conectar-se aos grandes fatos históricos
do século", conta. Eram aquelas pessoas, anônimas, pouco
charmosas, em geral consideradas nulas do ponto de vista da interferência
na ordem das coisas, que davam "consistência carnal" aos
grandes acontecimentos, às tendências mais importantes, às
mudanças de comportamento ao longo do século.
Políticos
- Ao mesmo tempo, mostra cenas com os grandes ditadores do nosso tempo,
Hitler, Stalin, Mussolini, Pol Pot, Pinochet. Políticos de influência
decisiva, como Churchill, Roosevelt, Kennedy. A tentativa é sempre
a mesma: conectar o grande ao pequeno e vê-los como partes distintas
de um mesmo e único processo.
Para manter a unidade
conceitual de um filme de tamanha abrangência, Masagão cercou-se
de algumas garantias teóricas. As idéias iniciais surgiram
em um curso que ele fazia com o historiador Nicolau Sevcenko. "Saía
das aulas com a cabeça a mil, fervilhando de idéias novas,
só conseguia dormir lá pelas 3 horas", conta.
A partir das indicações
de Sevcenko, Masagão tornou-se um devoto de A Era dos Extremos,
livro com vocação de clássico lançado em 1994
por Eric Hobsbawn. O historiador, marxista, dá um subtítulo
interessante ao seu livro: O Breve Século 20 (1914-1991). Quer
dizer, em sua periodização, o século 19, a belle
époque, vai até o começo da guerra de 1914, quando
a sofisticada civilização européia se degradou nas
trincheiras do primeiro grande conflito em escala mundial. E o século
20, iniciado sob o signo da destruição, prossegue, capengando,
até 1991, quando a União Soviética deixa formalmente
de existir.
Psicanálise
- Além desse decodificador histórico, Masagão usou
conceitos psicanalíticos. Por isso, brinca, o filme tem dois consultores
espirituais, Hobsbawn e o dr. Sigmund Freud. "A influência
da psicanálise começa dentro de casa", ele costuma
dizer, meio de brincadeira, meio a sério. Isso porque é
casado com a psicanalista Andrea Meneses Masagão, que o ajudou
no projeto.
Em que sentido? Pesquisando
imagens, seguindo cursos, lendo, o cineasta chegou à conclusão
de que nunca o fascínio da morte esteve tão presente quanto
neste breve século 20. O instinto de destruição,
ou algo desse tipo, revelou-se nas duas grandes guerras, mas também
na infinidade de conflitos "menores" que pulularam ao longo
do século e foram sendo tidos como "naturais".
Se há um pensador
que tentou decodificar teoricamente esse tendência à destruição
foi Sigmund Freud. Masagão percebeu que tinha no inventor da psicanálise
um parceiro informal de viagem, que poderia ajudá-lo a manter o
fio da pesquisa. Freud, no período entreguerras, escreveu obras
fundamentais, entre elas O Mal-Estar na Civilização, na
qual teoriza a existência de uma pulsão de morte que opera
silenciosamente no ser humano. "Vi, pelas imagens, como existe de
fato um fascínio pela morte do Outro, como o soldado tem grande
prazer em matar, e somente assim se podem explicar certos comportamentos",
diz o cineasta.
Vida
contra morte
- Lidando com esses temas, Nós Que aqui Estamos por Vós
Esperamos teria tudo para ser um documentário mais pesado que um
caminhão de entulho. Não é assim. Porque se Masagão
contempla a pulsão de morte, não deixa também de
falar de um instinto de vida, que dá equilíbrio ao todo.
O filme, uma colagem com grande coerência interna, registra o ser
humano do século 20 em seus momentos de baixeza e grandeza. Mostra
o soldado que apanha um pedaço de perna do inimigo estraçalhado
e a joga em cima da mesa, como se estivesse num açougue. Mas registra
também as épocas libertárias, inventivas, de culto
à liberdade. Mostra a alegria da arte e a criatividade do inventor.
Joga vida contra morte.
O espectador é
convidado a uma vertigem de imagens constrastantes.
Mas nada é gratuito.
"Tudo é intencional, da fusão de pessoas dançando
charleston nos anos 20, com os jovens dos anos 60 embalados ao som do
iê-iê-iê", diz Masagão. Por exemplo, durante
a pesquisa, o cineasta notou que havia dois períodos históricos,
no interior do século 20, caracterizados por sua grande criatividade:
justamente os anos 20 e os anos 60.
Foram décadas
que entronizaram o poder jovem. Produziram transformações
radicais na arte, tanto pelas temáticas abordadas quanto pela forma
inusitada que passaram a usar. Vendo os filmes das duas épocas,
Masagão notou um ponto em comum entre as duas: "Dançava-se
muito nos anos 20, fato que voltou a se repetir nos frenéticos
anos 60."
Esses insights talvez
não sejam perceptíveis a todos os espectadores. Mas, de
forma inconsciente, ajudam-no a mergulhar no filme, a ver nessa seqüência
de imagens algo mais que um mosaico informe e caótico - como, aliás,
parece ser a sucessão desordenada dos fatos históricos,
superficialmente sem relação uns com os outros. Talvez o
mérito maior do documentário seja justamente apresentar
uma ordenação possível daquilo que, à primeira
vista, aparece como caos.
Masagão mostrou
o filme ao ensaísta e professor da USP Arlindo Machado, e ele confirmou
essa impressão: "O Arlindo notou que, quem tem mais referências
teóricas, ou de informação, consegue acompanhar melhor
o andamento do filme; mas quem não tem, acaba sentindo que há
ali uma densidade que ele pode aproveitar e fruir."
Ritmo
- De fato, o documentário é pouco didático. Masagão
preferiu não "explicar" suas imagens. Acha que elas são
evidentes por si mesmas. São interligadas pelos fios conceituais
implícitos e também por legendas, escritas pelo diretor
e que passam na tela, sem nunca esclarecer as imagens, mas acrescentando
a elas uma informação adicional. O entorno técnico
do filme também é fator de qualidade. A música é
de Wim Mertens, e os efeitos sonoros de André Abujamra. A parte
musical faz com que as imagens escoem com bom ritmo.
Como acontece em geral
com os filmes de montagem, também este apresenta alguma dificuldade
de aproximação para o espectador. Se as imagens guardam
relação entre si, a aproximação de uma com
outra obedece ao sentido proposto pelo diretor. É preciso decodificar
essa relação e nem sempre ela está explicitada.
Mais ainda. Na boa montagem
- e esta é uma lição de Eisenstein, bíblia
de todo cineasta que se preze - a aproximação de uma imagem
com outra gera um terceira, que não é uma e nem outra, mas
síntese superior das duas. É o que se chama montagem dialética.
Que pode ser traduzida assim: um terceiro sentido aparece quando você
sobrepõe dois outros. É justamente nesse espaço que
reside a criatividade dos filmes de montagem. Usa-se imagens alheias.
Mas o sentido é dado por quem as selecionou e decidiu colocá-las
lado a lado.
Nós Que aqui Estamos por Vós Esperamos é uma oportunidade
de cinema inteligente no País.
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